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Gustavo Henrique: os dois lados da mesma moeda

“Tem salada com tomate, palmito, feijão fradinho e pimentão”, narrava bem calmo o rapaz de casaco verde e amarelo. Uma atleta deficiente visual ouvia e orientava quantas porções queria. Logo atrás, um menino com um braço amputado escolhia a mesa com um colega que caminhava sob próteses.

Era meio-dia. Atletas paralímpicos brasileiros, canadenses e angolanos recarregavam a energia no restaurante do hotel para as provas que aconteceriam naquela tarde. Começava o segundo dia de competições do Open Loterias Caixa de Atletismo, um evento teste para os Jogos Paralímpicos.

Fui apresentada ao Gustavo Henrique, atleta brasileiro de Uberlândia, Minas Gerais. Não é fácil identificar sua deficiência no primeiro momento. “Sou deficiente visual, tenho trinta por cento de visão”, me esclareceu.

Aos 23 anos, já coleciona títulos importantes. Campeão mundial e recordista nas modalidades de 100, 200 e 400 metros dentro da sua classificação funcional, o atleta se concentrava para disputar a primeira posição na competição de 100 metros naquela tarde.

Faltavam poucas horas para a sua prova. Combinamos de falar mais tarde.

As primeiras competições começavam. Da arquibancada, uma torcida pequena, mas animada, gritava pelos atletas brasileiros que conquistaram naquele dia 43 medalhas, sendo 16 de ouro. Uma delas, conquistada pelo próprio Gustavo Henrique.

Gustavo compete na classe T13. Para quem acompanha os Jogos Paralímpicos, é essencial compreender o que são essas letras e números. Cada atleta possui sua classe funcional, ou seja, um código que agrupa os esportistas por suas limitações e deficiências.

Para cada jogo, existe uma competição e premiação por classe. No atletismo, a classe de cada atleta é identificada com uma letra e um número. A letra “T" indica track, pista em inglês, que representa os atletas de velocidade, meio fundo e fundo. Já a letra “F" indica field, campo em inglês, e agrupa os esportistas de arremesso, lançamento e salto.

Após a letra, vem o número que aponta a deficiência e o grau de comprometimento do atleta. T40, por exemplo, são atletas velocistas com nanismo, F20 são atletas de campo com deficiência intelectual.

No caso dos deficientes visuais, existem três classes que separam o grau de comprometimento da visão. Atletas T11 são os mais prejudicados e incapazes de identificar objetos a qualquer distância. Os T12 conseguem reconhecer formas dentro de uma margem estabelecida. Já os T13 também reconhecem formas, porém com menor comprometimento que os T12.

Os competidores da classe T11 sempre correm acompanhados por um guia - profissionais que correm lado a lado do atleta indicando o sentido da pista e a distância da linha de chegada. Os atletas T12 podem escolher se querem um guia ou não. Já os T13 correm sozinhos.

Reencontrei o Gustavo no restaurante do hotel quando ele revelou o fato mais curioso da sua carreira como esportista: “eu era guia de atletas deficientes visuais”.

O menino que sonhava em ser policial e corria de kart, praticava corrida desde criança. Sua visão era normal. Em 2009, recebeu um convite para ser guia de atletas deficientes visuais. Ganhava pouco para isso, mas se divertia com as viagens.

Soube que tinha Ceratocone em 2011, enquanto cursava a faculdade de Direito. Uma doença degenerativa que provoca a percepção de imagens distorcidas. Além da condição que afeta a córnea, descobriu uma atrofia no nervo ótico.

Em 2013, as consequências já interferiam a rotina. Trancou a faculdade e desistiu da carreira policial. Foi quando ele se viu no outro lado da moeda. Deixou de ser guia para a competir como atleta paralímpico.

O mineiro de Uberlândia mora sozinho em Presidente Prudente, interior de São Paulo. Dentro de casa, encara com facilidade a baixa visão. É nas ruas que a vida fica mais complicada.

Impossibilitado de dirigir e até mesmo andar de bicicleta, usa transporte público na cidade. Como não consegue ler a linha do ônibus à distância, contou com gargalhadas que dá sinal para todos os coletivos que passam. “Uso a simpatia. Pergunto para o motorista se ele passa no lugar que quero ir. Eles respondem numa boa e dá tudo certo”.

A deficiência visual já colocou Gustavo em várias situações de saia-justa. Entrar em banheiro feminino ou paquerar uma menina que parecia ser bonita, mas era só efeito da visão desfocada.

Os momentos constrangedores viram motivo de piada para Gustavo. “Vivo minha vida feliz. Eu caio e levanto”, disse orgulhoso. Mas não foi sempre assim. O atleta não aceitava carregar o título de deficiente. Tinha vergonha. Quando conheceu a ex-namorada, escondeu sua baixa visão. “Fomos ao cinema. Fingi que estava entendendo tudo do filme. Demorei um tempo para contar que era deficiente visual”.

Por ser degenerativa, a doença do Gustavo ainda pode agravar fazendo com que ele perca ainda mais a visão. Ele diz que não pensa nisso. Vive um dia de cada vez. Enquanto isso, ele se adapta para superar suas condições. Para ler um livro, usa uma lupa. No supermercado, tira uma foto das letras pequenas com o celular e usa o zoom da tela.

Perguntei se ele sabia braille, o alfabeto com pontos em alto relevo usado por cegos de todo o mundo. “Não sei, nunca tentei”, respondeu. Por curiosidade, aprendi braille recentemente. Prometi ao Gustavo ensinar o alfabeto dos pontinhos naquela noite. Com muitas risadas, passamos por cada letra e escrevemos nossos nomes na linguagem dos cegos. Antes de nos despedir, entramos no elevador para a última prova do dia: ler os botões em braille. Medalha de ouro no novo alfabeto.

Amanheci agradecida por tudo que aprendi com os atletas de esportes adaptados. Vesti a camisa que ganhei do Comitê Brasileiro e embarquei de volta para São Paulo como a mais nova torcedora dos atletas paralímpicos.

 

(Texto de Ludmila Tavares, originalmente publicado no Tasômetro, blog do jornalista Marcelo Tas que, gentilmente, autorizou esta republicação)

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