As dores nos músculos é fácil explicar onde dói. É simples identificar os pontos, verbalizá-los, e, por fim, dar um jeito de remediar. Não é tão simples quando se trata da confusão que é a mente. É nisso que ele pensava enquanto desligava o telefone e explicava a resposta, que a princípio parecia ser algo simples, de como se sentia. Por um lado, se sentia bem, porque estava quase no fim. Por outro, se sentia incomodado, porque havia se mudado novamente. Novamente, a mudança era o problema.
Por uma série de fatores, ele teve que abandonar o apartamento anterior. O novo, não tão grande quanto antes, era melhor localizado e mais novo. Porém menor. E o fato de ser menor parecia algo muito grande nas suas preocupações.
Ele pôs mais uma caixa no chão, puxou a faca e cortou a fita durex que a prendia fechada. Tirou de dentro outra parte das louças e tentou lembrar da lógica que fez ele colocar taças de vinho junto de patinhos de borracha. Mas logo se esqueceu disso, porque caiu em reflexão, e pensou, seriamente, porque havia comprado os patinhos a final de contas, se nem mesmo tinha uma banheira para pô-los a boiar.
Mudar-se é um processo de análise de si mesmo, ele concluía pouco a pouco. É um momento para deixar não só a casa para trás, mas sim muito das suas coisas. Muito do que se acumula não é intencional, mas sim uma consequência da resistência que temos a nos desapegar das coisas. Não que nos apegarmos seja algo ruim, disso ele tinha certeza. Mas é que apegar-se ao que quer que seja trás a noção de familiaridade, e, de um modo ou de outro, queremos nos sentir parte de onde estamos.
O telefone tocou mais uma vez, mas dessa vez foi ignorado. “Como você está?” parecia algo muito complexo para ser respondido. Parecia uma pergunta muito familiar, com uma resposta já apegada a si mesmo. Já que estava se mudando, queria uma resposta nova, que ainda não tinha endereço.
Outra caixa, outra lembrança. Aquela continha os livros, que já nem mais possuíam lugar porque a estante era embutida no último apartamento e acabou ficando por lá. As vezes deixa-se uma coisa para trás e outras tantas insistem em acompanhá-la no seu caminho. Os livros ficaram na caixa, porque não tinham mais lugar no novo espaço. No entanto, o novo espaço tinha um barzinho no canto da sala, e as velhas garrafas que ficavam no armário tiveram a sua vez. As garrafas substituíram os livros na decoração, o sofá novo superou o antigo, o tamanho do novo era menor que o velho, e, a satisfação, não sabia se as garrafas eram melhores que os livros ou se o barzinho era tão útil quanto a estante; A satisfação só sabia que levaria um tempo para decidir-se, se estava de acordo ou não.
A campainha tocou. Infelizmente, seja lá quem fosse, não poderia ser ignorado como o telefone, porque tocou duas vezes para mostrar que não tinha muito tempo a esperar.
- Tenho uma notícia para o senhor, – começou dizendo a moça. – Como você não assinou o contrato ainda, o proprietário tem o direito de cancelar. E foi isso que ele fez. Você vai ter que sair.
Sem tocar em nada, ele saiu. Simplesmente desceu as escadas, e ao saldar o porteiro, ouviu:
- Seja bem-vindo, senhor. Você acabou de mudar-se, não?
- Mudei? Ainda não. Ainda acho que sou o mesmo, na minha última casa. Só estou de passagem. E, como passageiro, já embarquei para a próxima.
No fim, quem muda é o tempo. O costume vem quando o tempo cansou de se mudar.
LUCAS RADAELLI é natural de Curitiba (PR). Cego desde nascença do olho esquerdo e, desde os 4 anos, do direito também. Estuda ciências da computação na Alemanha. Lucas se define como deficiente visual, nerd, leitor compulsivo e projeto de escritor que gosta de opinar sobre coisas relacionadas a esses e outros assuntos usando o seu ponto de vista, que, segundo seu bom humor, aparentemente é nulo. Blog: lucasradaelli.com